O dia em que passei a gostar de Carlos González
Não era particular fã de Carlos González, em parte, pela popularidade que ganhou, e por fazerem das palavras dele citações bíblicas. Senti que era uma moda, e eu cá sou pouco de modas. Ora, quando via artigos que tinham o nome dele no título, passava à frente, já estava a enjoar, já não podia ouvir falar do senhor.
Ontem, tudo mudou, e tem agora aqui uma fiel fã (bate na boca, filhinha, bate). Num dos grupos de Facebook onde ando, uma leitora atenta do blog (vou acreditar) partilhou um magnífico vídeo deste senhor a falar sobre a alimentação de bebés e crianças e escreveu-me as seguintes palavras “Vi este video sobre alimentação. Acho que vai gostar.” Como é possível pessoas “estranhas” me conhecerem tão bem?
Quando vi o nome do senhor, pensei “oh não, mas há tema que o senhor não goste de falar?” Dei o benefício da dúvida, e como é um tema que me é muito querido, resolvi tirar um pedaço do meu tempo para ver.
Descobri um profissional extremamente inteligente, com um sentido de humor excepcional, e rendi-me.
Recomendo-vos vivamente a verem o vídeo no integral, tem legendas em português (do Brasil) e tudo, mas deixo-vos as passagens com que mais me identifiquei, e com as quais partilho inteiramente a opinião do senhor.
Preferimos comer comida normal, escolher a nossa comida, comer a quantidade que temos vontade, embora isso signifique que algumas pessoas errem. (…) Queremos o privilégio e escolher a nossa alimentação, ainda que ela não seja perfeita, e queremos que os nossos filhos tenham esse mesmo privilégio. (…) Que sejam livres para decidir a sua alimentação. E esse é o objectivo da alimentação complementar dos bebés.
(…)
A criança que leva à boca sozinha um único fio, um macarrão, um único pedaço de pão, um único pedaço de frango, está avançando no caminho em direcção a comer de forma normal. (…) Está avançando, está aprendendo coisas importantes! Está aprendendo a agarrar a comida com a mão, a levá-la à boca, a distinguir os sabores e as texturas dos alimentos. Está aprendendo a tomar decisões, “isto gosto, isto não gosto”. (…) Ele não tem que gostar de tudo igualmente. (…) Está aprendendo que comer é algo agradável.
Por outro lado, a criança na qual enfiam 250gr de puré de legumes, tudo triturado… às vezes há crianças às quais dão legumes no biberão, quase repugnante! Dão a elas 250gr de puré de legumes, à base de distraí-las, de tapar narizes para que abram as bocas e enfiar, e enganá-las, e a criança protestando e chorando, e os pais insistindo, “esse menino não aprende nada!” Ele não aprendeu a agarrar a comida, não aprendeu a metê-la na boca, não aprendeu a mastigar, não aprendeu a deglutir, é tudo líquido. Não aprendeu a distinguir os sabores e texturas dos alimentos, porque tudo tem a mesma textura, está tudo batido, e tudo tem o mesmo sabor, porque está tudo misturado. Não aprendeu a tomar decisões, vão enfiar da mesma maneira, se ele quiser ou não. Essa papinha foi inútil, a criança comeu tudo e não aprendeu nada.
(…)
A criança que leva meses comendo purés na base da obrigação e de ser distraída não está mais perto de comer um prato de macarrões. Está ainda mais longe. Temos que tirar o puré, desacostumá-la ao puré, que tanto nos custou a acostumá-la, e ela ainda tem que comer o seu primeiro macarrão.
(…)
Comer de forma normal consta de duas partes: uma, é comer comida normal, e depois, comê-la de forma normal. A forma normal é sem triturar, com a sua própria mão, ou com o seu próprio garfo, ou a sua própria colher, mastigando levemente e comendo o que quiser, quando quiser, não comendo o que obrigam a comer.
(…)
E a comida que eu como normalmente, será saudável para o meu filho? Pois vá averiguar. O importante para a futura saúde da criança, não é o que ela vai comer aos 6 meses, ou o que vai comer entre os 6 e os 12 meses. O importante é o que ela vai comer durante os próximos 30 anos, que será provavelmente o que ela comerá a vida toda.
Por exemplo, quando costumamos dizer que não se deve pôr sal na comida dos bebés, que não se deve dar açúcar (…), não é porque nessa idade eles fazem mal. É porque nós gostaríamos que as crianças se acostumassem a ter uma alimentação mais saudável que os seus pais. Mas não estamos a conseguir, é um fracasso total. Porque a mesma criança que aos 8 ou 9 meses tem uma dieta perfeita, uma dieta que seria aprovada por qualquer supervisão, o seu legume fervido, o frango na chapa, e nada de sal, e nada de açúcar, tudo maravilhoso… essa mesma criança aos 2 anos come batatas fritas de pacote, come rebuçados e doces, e bebe coca-cola. Para isso, não precisava começar tão bem. Se aos 2 anos você começa a dar ao seu filho batatas fritas de pacote e coca-cola, você já pode começar aos 6 meses, que diferença faz?
O que vai determinar a pressão arterial dessa criança, quando ela tiver 30 anos, não é o que ela tomou aos 6 meses, mas sim quanto sal ela tomou por 30 anos, quanto açúcar ela comeu por 30 anos, quanta gordura saturada ela comeu por 30 anos. Então, o que se deve fazer não é os pais comerem qualquer porcaria e darem ao filho a dieta saudável. Porque esta criança no ano que vem, ou em 2 anos no máximo, vai comer o mesmo que seu pais. O importante é que os pais tomem a decisão consciente de fazer uma dieta saudável. (…) E o que nós, profissionais de saúde, deveríamos fazer, não é explicar a uma mãe como preparar uma papinha de bebé perfeita, mas sim explicar às mães como preparar uma dieta saudável para a família toda.
(…)
Muitas famílias se preocupam, se a criança vai engasgar com a comida. Se ela come a comida com pedaços, é claro que ela vai engasgar. É absolutamente impossível que uma criança a comer sólidos e não se engasgue nunca. Da mesma forma, é impossível que elas comecem a caminhar e nunca caiam no chão. (…) Se não deixarmos que ela prove sólidos com 8 meses, com 6 meses, com medo de que se engasgue e não lhe oferecemos até os 2 ou 3 anos, o que vai acontecer é que ela vai engasgar com 2 ou 3 anos.
(…)
As crianças passam, ao longo do seu desenvolvimento por períodos chamados “janelas de oportunidade”, no quais aprendem determinadas coisas, em que desejam aprender determinadas coisas. Chega um momento em que tudo o que a criança deseja é gatinhar, chega um momento em que tudo o que ela deseja é ficar em pé, chega um momento em que tudo o que ela deseja é andar, falar ou comer. (…) Quando deixamos a criança fazer as coisas no momento em que ela sente esse desejo, ela se esforça, repete algumas vezes e logo aprende a fazê-las bem. Mas é muito fácil cair na tentação de não deixar. Se você deixa o seu filho comer com a própria mão, ele come pouquinho, come devagar, se suja e as coisas caem no chão. (…) É muito fácil cair na tentação de você fazer tudo. (…) Mas ele não aprendeu nada. É importante deixar ele fazer as coisas na hora em que sente esse desejo.
(…)
Jamais, jamais deve obrigar uma criança a comer, por nada desse mundo, sob nenhuma justificativa, em nenhuma circunstância, por nenhum método.
(…)
Não se deve obrigá-las [as crianças] de boas maneiras.
(…)
Jamais se deve usar a comida como prémio ou castigo.
[edit]: Entretanto o vídeo foi retirado da internet.
Tags In
12 Comments
Deixe um comentário Cancelar resposta
Artigos mais lidos
É difícil pensar que o meu filho agora come duas conchas de sopa e se lhe der comida em pedaços quase não toca, e mesmo assim achar que fica alimentado.. Tem 8 meses e sempre comeu bem sopas e papas, nunca obriguei a comer, não há brinquedos nem distrações. Agora estamos a começar a experimentar bocados, porque ele aprendeu que a comida vem na colher e não das mãos dele.. Espero dentro em breve ter a confiança necessária para o deixar escolher o que quer comer, e quanto quer. Mas nas creches não podem dar essa liberdade, não há tempo nem disponibilidade.. Vai/se fazendo o que se pode! Obrigada por esta partilha, este pediatra para mim tem o condão de me fazer sentir bem ao seguir o meu instinto, quando os profissionais de saúde normais só nos fazem sentir culpa..
🙂 Acho que mais uma vez, o pressuposto da nossa sociedade está errado. O que é suposto eles aprenderem na creche nessa idade? Gatinhar? Ficar de pé? E comer? Não tem a mesma validade? O errado é muita gente pensar que a alimentação é uma obrigação, que temos de comer para sobreviver, o que não é mentira. Mas para mim, e o que retiro das palavras do Dr. González, é que comer também é uma aprendizagem, temos de aprender a comer, a saber alimentar-nos bem, saudável, a sabermos nutrir o nosso corpo. É tão importante, e requer a mesma disponibilidade nossa e dos outros adultos cuidadores (amas e educadoras) dar oportunidade de bebés e crianças aprenderem a comer, no momento que eles assim o desejam.
Não concordo com tudo. Acho que devemos ensinar boas maneiras às crianças sim. Comer com a boca fechada, por exemplo, é morfologicamente importantíssimo. Assim como ensiná-las que se fizerem porcarias com a comida alguém terá de limpar, sejam os pais ou a empregada. Acho mesmo importante incutir-lhes essa noção de respeito pelo trabalho dos outros. A não ser no mundo das mães perfeitas onde este pediatra vive, em que as mães alegremente lavam o chão duas vezes ao dia, e não se ralam se o filho só comeu um fio de esparguete o dia todo porque não quis mais nada. Não tenho paciência para estas teorias, mas lá está, como estou longe de ser perfeita também não devo ser o público alvo deste senhor.
Ele não é dono da verdade absoluta, por isso, e em como em todas as teorias, vai haver alguém que não concorde (também não concordo com algumas teorias dele a respeito de outros temas). Em relação a comer com a boca fechada, as minhas filhas nunca comeram de boca aberta. Pode ser por ainda serem pequenas e instintivamente ser assim que comem, mas nunca as tive de corrigir. Também, e na faixa etária que este senhor descreve, é difícil dizer a um bebé de 8 meses, ou 2 anos, para comer de boca fechada, a meu ver. Depois, em relação à porcaria, acho que há que primeiro faze-los valorizar a comida, para que não a deitem para o chão. A minha filha mais velha nunca deitou comida para o chão. A mais nova deita quando já não quer, numa espécie de sinal. Não limpo o chão alegremente por estar a limpá-lo, mas limpo o chão alegremente por saber que naquele dia a minha filha aprendeu alguma coisa, e como consequência, vou ter que limpar o chão, lava-la, mudar-lhe a roupa, por a roupa a lavar e a estender e passá-la a ferro. E não o faço simplesmente 2 vezes ao dia, mas 4 ou 5, ou as vezes que forem precisas. É uma escolha minha, sofro as consequências. Também tenho de limpar a mesa e os materiais, quando a ponho a fazer pinturas. Não a vou deixar explorar essa actividade, porque depois tenho de limpar? Também tenho de ajudar a minha filha mais velha a arrumar os blocos de construção, depois de ela brincar e aprender algumas coisas sobre formas, cores e números. Não a vou deixar brincar, porque depois tenho de arrumar? Temos de começar a olhar para a alimentação como uma experimentação, e um processo de aprendizagem, tal como olhamos para os livros, os brinquedos educativos, as pinturas e as modelagens. Posto isto, tenho a acrescentar, que quando ele se refere a boas maneiras, e mais uma vez friso, que ele está a tratar de crianças nos primeiros 3 anos de vida, não acho que se refira ao comer de boca fechada, ou deitar comida para o chão, mas a exigências culturais dos cotovelos em cima da mesa, o segurar o garfo apropriadamente, sentar-se direito na mesa, etc. Só agora, aos 3 anos da minha filha mais velha, consigo explicar-lhe essas ideias, que no fundo, não têm razão de ser, simplesmente são, porque a sociedade em que vive assim o exige. A minha filha não percebe porque não pode ter os cotovelos em cima da mesa, e nem consegue arranjar forma de comer sem os cotovelos lá… o que faço? Percebo perfeitamente o que quer dizer, e agradeço a sua partilha. São de partilhas como a sua, que podemos reflectir e perceber estas várias questões que assolam as mães.
Em relação ao fio de esparguete, recomendo a ler um texto que escrevi há algumas semanas, em que falo nesse fenómeno, em bebés com menos de 12 meses (que é o que o senhor González trata quando fala em comer "uno solo macarronito") 🙂
Parabéns pelo excelente post e pelo excelente debate. Fui introduzida a este excelente orador e pediatra por uma enfermeira fenomenal que me apoiou durante a pressão violentissima a que fui sujeita para dar suplemento de leite ao meu bebé. Tal como este senhor disse e se veio a provar cada bebé tem a sua própria curva de crescimento e as cuevas de MÉDIAS não são minimos de peso. Enfim este senhor e a enfermeira Sónia de sao domimgos de Rana ensinaram-me muito.E com isto o digo como adulto inteligente, tal comi a autora deste blog, ouvi, selecionei informação, retirei conclusões e aprendi 🙂 continue com este excelente trabalho adoro o seu blog.
Excelente texto. Tivesse eu o lido há 20 anos atrás não teria cometido erros bem perigosos que hoje estou a pagar por isso. Mas, tranquila, hão-de aprender um dia. Há sempre que ter esperança.
Ja conhecia, fiz o download do livro dele há uns tempos, mas acabei por não acabar de ler.. mas "devorei" este vídeo. E concordo muito, com (quase) tudo… Obrigada pela partilha..
Aprendemos pois. 🙂 Eu era um horror para comer em pequena, e foi assim até aos meus 20 e qualquer coisa anos. Até que decidi mudar e tenho vindo a mudar até agora. Há sempre tempo de remediar estas coisas 🙂
[…] suma, isto não é uma questão de dentes, mas sim de oportunidade. Como o pediatra Carlos González muitas vezes refere, existem janelas de oportunidade para os nossos bebés fazerem […]
[…] uma pena o vídeo em que baseei este post já não estar online. Não era fã de Carlos González, mas depois de ouvir a linha de pensamento […]
Porque não está mais o video disponível?
Olá! Não sei. O vídeo não era meu, nem publicado por mim.